quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Eu e o prato azul

Andava pelas ruas de Ceilândia, quando me deparei com uma enorme fila. Por curiosidade entrei no fim. Brasileiro que se preze adora filas. De preferência que seja grande e tediosa. Não esperava por saber o que aquelas pessoas faziam ali, pois a fila dava voltas e voltas no quarteirão. Andava a passos curtos e com o passar das horas percebi que aquela fila era para doação de comida à pessoas carentes.

A mulher que servia aos famintos não usava concha e sim uma espécie de pá gigante, daquelas para cavar buracos. Enquanto se aproximava a minha vez, observava a maneira como os pobres famintos eram servidos. A mulher jogava um líquido meio esverdeado no prato dos indigentes como se estivesse jogando terra numa cova. Quando estava bem próximo recebi um prato de plástico raso e azul e disse:


- Senhora, não precisa caprichar, tá bem!


A mulher se quer me olhou. Simplesmente jogou o líquido verde no prato azul e solicitou o próximo. A sopa transbordava, caindo aos meus pés. Andei cautelosamente até me acomodar no chão, com as outras pessoas. Olhei aquela coisa verde e tive a impressão que ela estava sorrindo pra mim. Sinceramente senti nojo, mas para não demonstrar indiferença levei uma colher à boca. Em segundos meu estômago roncou. Olhei pro lado e vi algumas crianças tomando a sopa sem colher. Colocavam a beira do prato na boca e entornavam. Insisti com uma outra colherada, mas meu estômago roncou de novo e mais alto. De repente, comecei a suar frio e me eu um nó no intestino. Tive de sair correndo pra achar uma privada. Foi terrível!


Entre os minutos que permaneci no banheiro, veio-me a cabeça o nome de um figura, o imperador romano Caio Otávio Augusto, que governou Roma com a política do pão e circo e foi admirado por toda a plebe.


Como num estalo, essa idéia bateu no meu trapézio enquanto permanecia ali, na forma vital, fazendo as necessidades básicas à força.


Essa tradição histórica insiste em percorrer os séculos, caminhando numa fila interminável, a passos sem fim. Sem horizonte, sem perspectiva, sem momento de chegada. Com apenas uma única condição justa, afastar a indignidade do sofrimento causado pela angústia da fome. Aproveitando-se disso, a tradicional política brasileira tem como base essa tragédia romana, da qual muitos acabam condicionados à contemplação, sendo levados a amar suas filas.


Novembro de 2001